quarta-feira, 30 de setembro de 2009

PODE O CRENTE CELEBRAR SOZINHO A CEIA DO SENHOR?


Há alguns anos fui surpreendido por uma senhora, freqüentadora de uma igreja onde eu pastoreava, com a informação de que ela havia encontrado uma maneira bastante prática de participar da Santa Ceia. Impedida de receber o sacramento pelo fato de não ser membro da igreja, a senhora disse que, assistindo aos cultos do missionário R.R. Soares pela televisão, resolveu ela mesma preparar os elementos (pão e vinho), e celebrar junto com o pregador neo-pentecostal a comunhão, quando a cerimônia da Santa Ceia era transmitida pela TV.

Dias depois, na mesma cidade, uma outra senhora – esta, membro da igreja – relatou que usava da mesma prática. Impossibilitada de freqüentar regularmente os cultos devido a constantes enfermidades, a irmã raramente participava do sacramento junto com a igreja, sendo necessário que todos os meses eu fosse à sua residência levar os elementos, a fim de que ela pudesse compartilhar a experiência sacramental.

Nos dois casos, chamou-me a atenção o fato de a experiência comunitária ter sido facilmente substituída por um tipo de comunhão virtual, separada da jurisdição formal da Igreja. Para aquelas senhoras, a fé é uma experiência tão individual, tão singular que dispensa a união formal à igreja para celebrar o rito mais significativo da fé evangélica.

Essas situações expressam uma realidade crescente em nossos dias. Muitas pessoas têm substituído a congregação real pelas igrejas virtuais. A experiência de fé tem deixado de ser uma vivência comunitária para se transformar numa prática individualizada, e, às vezes, egocêntrica. O elemento particular da fé exclui, para muitos, a necessidade vital da comunhão com uma congregação.

A fé tem elementos muito particulares, é verdade. É uma experiência pessoal, sem dúvida. Ninguém pode ter fé pelo outro, nem afirmar, com certeza, que a fé alheia é pequena ou insuficiente. É individual. Mas não pode ser individualizada. Embora seja uma experiência pessoal, a fé cristã também é uma experiência comunitária. Deve ser exercida em comunidade.

A fé vivida de forma comunitária é um poderoso instrumento de proclamação evangélica (Rm 1. 8), além de ser um designativo dos crentes (Gl 6. 10). A unidade da fé (Ef 4. 13) é um sinal de maturidade espiritual, unidade alcançada no verdadeiro sentido comunitário de Igreja.

Uma das maiores expressões de fé do povo cristão é a Santa Ceia. Nela declaramos a nossa fé individual coletivamente. A fé demonstrada pelos meus irmãos é a mesma fé que eu professo. Isto torna a Santa Ceia um importante testemunho de fé comunitária.

O apóstolo Paulo condenou a visão dos coríntios de uma indidualização da fé na Santa Ceia: “Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia...” (1 Co 11. 21). Eles haviam transformado a eucaristia numa bênção meramente individual. Cada um celebrava a sua eucaristia e ao seu próprio modo. Não havia comunhão, de acordo com Charles Hodge, em seu comentário a 1 Coríntios, exatamente porque eles não comiam juntos. “Não eram todos participantes de um só pão. Não esperavam uns aos outros. Ao contrário, cada um tomava de sua própria ceia que havia trazido, antes que os demais pudessem unir-se”, afirma Hodge. Paulo chama isto de menosprezo à igreja (1 Co 11. 22).

Individualizar a fé eucarística é menosprezar o sentido comunitário da Santa Ceia, é menosprezar a igreja. É afirmar que os outros irmãos são indignos de comer conosco. É um menosprezo aos outros crentes. Para corrigir aquela visão distorcida, o apóstolo exorta: “Assim, pois, irmãos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros”. Isto para que o culto seja feito em conjunto, a fim de se comemorar com um só corpo a morte do Senhor.

O apóstolo Paulo (1 Co 11. 23 a 26) relembra a atitude de Jesus quando da instituição da Santa Ceia. Calvino comentando o texto diz que “Cristo, aqui, distribui o pão entre os discípulos a fim de que pudessem todos comê-lo juntos; e desta forma todos pudessem participar, e participar igualmente”. E conclui: “Portanto, quando uma mesa comum não é preparada para todos os que crêem, quando estes não são convidados a partir o pão comum, e quando, em resumo, os fiéis não compartilham uns com os outros, não há base para definir o processo como sendo a Ceia do Senhor”. Portanto, a celebração da Santa Ceia e a comunhão congregacional são elementos que foram unidos por Cristo na própria instituição da eucaristia. “Isto é o meu corpo que é dado por vós; comei dele todos”, disse Jesus. O significado destas palavras é que os participantes do pão devem ser, igualmente, participantes do corpo. “Assim, quando uma pessoa come o seu próprio pão, a promessa, neste caso, não se efetiva”, diz Calvino.

Nenhum crente, por mais piedoso que seja, está autorizado a celebrar a sua própria Santa Ceia, como se não dependesse da Igreja. Não é dada a cada crente a liberdade de oficiar nenhum dos sacramentos. Eles devem ser administrados pela Igreja constituída, através de seus ministros legitimamente ordenados, e não pelos crentes em particular. De acordo com a Confissão de Fé de Westminster, os sacramentos foram instituídos “para fazer uma diferença visível entre os que pertencem à Igreja e o resto do mundo, e solenemente obrigá-los ao serviço de Deus em Cristo, segundo a sua palavra”. Se as pessoas puderem celebrar a Santa Ceia quando quiserem em suas próprias casas, estaria excluída qualquer possibilidade de distinção.

Celebrar a Santa Ceia de maneira individualizada, além de ser uma desobediência à ordenança de Cristo e não produzir efeito algum, é um desmerecimento da Igreja como Corpo de Cristo. A caminhada cristã exige a convivência comunitária. A experiência de comunidade é imprescindível à formação e fortalecimento da maturidade cristã. Abrir mão disto é negar a história escrita pelos apóstolos sob a orientação e a bênção de Cristo, o Senhor da Igreja. Ser igreja individualmente não exclui a necessidade de ser igreja em comunidade. Deixar a congregação para viver uma fé individualista é errar contra as Escrituras que exortam: “Não deixemos de congregar-nos” (Hb 10. 25).

A igreja é uma comunidade de discípulos que vivem em sujeição mútua. O verdadeiro discipulado tem efeito e significado na experiência comunitária. Na cruz Jesus operou o milagre da graça a fim de vivermos comunitariamente a experiência de ser igreja. É um grande privilégio e uma grata satisfação poder reunir-nos, como Igreja, a fim de celebrarmos juntos a Ceia do Senhor, e proclamarmos, como um só corpo, a sua morte e ressurreição. Qualquer prática que elimine a necessidade da experiência comunitária não poderá ser considerada como celebração da Ceia do Senhor. Que me desculpem as irmãs mencionadas no início do artigo, mas o que elas celebraram não foi, de maneira alguma, o sacramento instituído por Cristo.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O PECADO


Não há nada pior do que o pecado. E não há nada mais triste e horrendo do que a pecaminosidade. O pecado é uma mancha na alma; é desgosto e traição, é treva, é injúria; um acinte.

Todo pecado é o próprio pecado. Não há pecado pior do que o outro. Pecado é sempre pecado. Todo pecado é hediondo; todo pecado é criminoso; todo pecado é ofensivo; todo pecado é uma agressão à santidade de Deus.

Não existe algo do tipo pecadinho e pecadão. Não há, diante de Deus, pecado mais grave e pecado menos grave. Para Deus, pecado é sempre pecado, uma falta de conformidade com a sua vontade e uma transgressão da sua lei. Um tiro errado no alvo determinado.

O pecado é uma frustração, é uma tentativa do homem de ser o que ele não foi criado para ser. É uma busca por viver fora de um curso para o qual não há outra alternativa. O pecado não é uma segunda alternativa ao plano de Deus; é um desvio dele. É andar na contramão.

O pecado é mais do que um simples equívoco, mais do que um mero erro de cálculo. Pecado é algo muito mais sério; é um erro grave. Para o pecado não basta um simples pedido de desculpa; é necessário haver punição.

Pecado não é apenas um ato fortuito, mas um estado inevitável. É a condição de onde se projetam as ações pecaminosas.

O pecado não é um distintivo cultural, mas uma condição universal. Não é uma enfermidade que uns contraem e outros não. É uma doença que infectou todos os seres humanos, indistintamente. O pecado não é um infortúnio dos pobres, nem seqüela da riqueza. Não é fruto do meio, nem produto da injustiça econômica e social. Não é um espasmo temporário, mas uma moléstia constante.

O pecado submete o homem ao seu domínio. O homem está debaixo do pecado, está sujeito e submisso a ele, sob seu controle, sob seu comando.

O pecado não é um poder externo, mas habita dentro do homem, está enraizado nas fibras e células, radicado no DNA humano, arraigado no coração, e o ocupa como um inimigo ocupa um país.

O pecado produz estrago e morte aos homens e ira e indignação em Deus. O pecado nunca é inofensivo aos homens, e jamais imperceptível a Deus. Todo pecado causa dano ao pecador e seus semelhantes e ofende a Deus. Da mentirinha ao assassinato, do olhar malicioso ao adultério, do desejo secreto ao furto, todos os pecados são, essencialmente, desvios do propósito estabelecido por Deus.

O pecado é enganoso, produz uma falsa sensação de bem-estar, uma pífia impressão de prazer. O pecado é sempre uma mentira, uma ilusão, um engodo, uma quimera.

O pecado é irresponsável, é antinômico, é aversão ao que é legal, uma falsificação do que é legítimo; é oposição ao nobre, é o impulso ao prazer acima do dever; é injustiça, iniqüidade e desamor; é divida, ofensa e ultraje.

Só há um antídoto capaz de livrar o homem dessa enfermidade chamada pecado: o sangue de Jesus Cristo. Esse sangue purifica o homem de todo pecado, lava completamente de sua imundície. O sangue de Cristo liberta, desata, resgata e emancipa o homem do pecado. O sangue de Jesus é suficiente para pagar a dívida que o pecado contraiu. O sangue de Cristo confere o perdão que o pecado necessita, porque Cristo sofreu o castigo que o pecado merece.

O sangue de Cristo é a resposta de Deus ao pecado; a resposta definitiva. A única forma do homem livrar-se do domínio do pecado é render-se ao domínio de Cristo. Nele os efeitos do pecado são curados pelos efeitos da graça redentora. Onde sobejam os efeitos pecado, transbordam os resultados da remissão de Cristo. Cristo veio ao mundo para salvar pecadores do pecado, tirá-los de suas garras, libertá-los e conduzi-los de volta ao caminho traçado por Deus, e assegurar-lhes plena e irrevogável sentença de liberdade. E para que todos saibam que o pecado, por mais vil que seja, tem um limite, Deus encravou na história humana uma cruz na qual fixou a fronteira entre a enfermidade e a cura, a morte e a vida, a luz e as trevas, o desespero e a esperança, a desventura e a graça, o inferno e o céu. Para que todos compreendam que, maior do que o pecado, é a graça que o remove, e restaura definitiva e completamente aqueles a quem ela de destina.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

SOBRE AUTORIDADE E BOBOS DA CORTE


Uma reportagem da edição eletrônica do Diário de Canoas desta semana mostrou que um aluno de uma escola da cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul, foi obrigado a limpar a pichação que fez na parede da sala de aula da escola onde estuda. De acordo com a reportagem, a escola havia acabado de ser pintada em um mutirão de pais, professores e alunos no feriado de 7 de Setembro. Foram necessários 8 meses para arrecadar cerca de mil e oitocentos reais para comprar todo o material necessário, além de muitas horas de trabalho voluntário.

De acordo com a professora, em entrevista a uma rede de televisão, o aluno teria afirmado que seria o primeiro a sujar as paredes da escola. Dito e feito. Um tempo depois apareceram nas paredes da escola marcas de pichação com o apelido do tal aluno. O garoto pichador levou uma bronca da professora e vice-diretora da escola, e as imagens da advertência foram parar na internet. Nas imagens o garoto de 14 anos aparece cobrindo as marcas nas paredes, e a professora dizendo que ele parecia um “bobo da corte fazendo palhaçada, estragando as coisas dos outros”.

A isso seguiu-se uma avalanche de opiniões sobre a atitude da professora. Para a mãe do estudante, o filho foi humilhado. Para alguns especialistas, a atitude da educadora expôs o menino a condição vexatória, contrariando o Estatuto que defende os direitos da Criança e do Adolescente, o ECA. Há outros que defendem a atitude da professora, e ela, por sua vez, reconhece que exagerou, mas defende-se argumentando que ficou indignada com desrespeito do garoto.

Eu também quero dar também a minha opinião. Se tivesse que escolher um lado para defender, certamente eu ficaria do lado da professora. Só quem milita na educação sabe a dificuldade que é manter uma escola limpa e organizada. Infelizmente, na maioria das vezes, o vandalismo que depreda e devasta as instituições de ensino públicas no Brasil é provocado pelos próprios alunos. A precarização do ensino por parte do Estado impede que as escolas recebam melhorias estruturais, acelerando a degradação dos espaços físicos agravando severamente a deficiência da educação pública. Resta aos educadores unir-se às comunidades locais em ações voluntárias para restaurar um pouco da dignidade das instituições públicas de ensino, preenchendo um vácuo deixado pela leniência e ineficiência do Estado. O que a professora de Viamão fez junto com a comunidade é digno de elogios diante da inércia do poder público. Gastar horas de serviço em pleno feriado para pintar a escola é, no mínimo, respeitável.

Respeito foi exatamente o que faltou ao aluno repreendido. Ao ameaçar que seria o primeiro a pichar a escola ele deixou claro seu completo descaso com o esforço alheio. E, ao consumar a ameaça, riscando as paredes, apostou suas fichas na impunidade, tão comum em casos de delinqüência juvenil no país.

É possível, sim, admitir certo exagero no ato da professora. Mas ele é totalmente justificável, em minha opinião, levando-se em consideração o desrespeito do aluno. A juventude do nosso tempo tem sido criada para não obedecer às regras, não respeitar limites e nem assumir a responsabilidade por seus atos. A cada dia surgem casos de adolescentes e jovens agredindo pessoas, depredando patrimônios públicos e privados ou, em casos mais extremos, roubando, matando e cometendo outros crimes, escondendo-se atrás de uma inexistente inocência, sendo defendidos e amparados por todos os recursos disponíveis, que terminam por legalizar a irresponsabilidade e autorizar a desordem. Não sou contra os mecanismos que defendam os direitos de crianças, adolescentes ou qualquer outro segmento da sociedade. Mas acredito que está na hora de falarmos também em deveres. Crianças e adolescentes têm direitos, sim, mas também têm deveres. Se eles não forem ensinados desde já que devem respeitar limites e agirem com responsabilidade, quando aprenderão? Se uma escola não pode ensinar regras elementares de responsabilidade e bons modos aos alunos, quem ensinará?

É certo que isso deveria ter sido ensinado pelos pais do garoto, mas o que se viu na reportagem foi uma mãe disposta a ir às últimas instâncias para defender o direito do filho e, em nenhum momento assegurando qualquer tipo de correção ao ato de vandalismo gratuito. As famílias têm perdido a condição de primeira escola do cidadão. Os pais têm deixado de ser educadores para se transformarem em defensores das traquinagens dos filhos. E a moçada, consciente da impunidade, revira a sociedade de cabeça para baixo sem a menor cerimônia, e sai rindo de deboche, porque desconhece as noções elementares de respeito e autoridade.

A escritora Lya Luft escreveu um excelente artigo na revista Veja desta semana (“Educação e autoridade”), no qual afirma que “o tema autoridade começa a ser um verdadeiro tabu entre nós”. Lya defende ainda que a educação e a noção de autoridade começam em casa. Permitam-me citar algumas partes do texto de Lya: “Na década de 60 chegaram ao Brasil algumas teorias nem sempre bem entendidas e bem aplicadas. O ‘É proibido proibir’, junto com uma espécie de vale-tudo. Alguns psicólogos e educadores disseram que não devíamos censurar nem limitar nossas crianças: elas ficariam traumatizadas (...) Resultado, crianças e adolescentes insuportáveis, pais confusos e professores atônitos: como controlar a má-criação dos que chegam às escolas, se uma censura séria por uma atitude grave pode provocar indignação e até processo por parte dos pais? (...) Meus anos de vivência mostraram que a meninada, que faz na escola ou nas ruas e festas uma baderna que ultrapassa o divertimento natural ao seu desenvolvimento mental e emocional, geralmente vem de casas onde tudo vale. Onde os filhos mandam e os pais se encolhem (...)”.

Melhor para aquele garoto foi a professora tê-lo feito limpar a sujeira que fez, fazendo-o assumir a responsabilidade por seu erro; e teria sido melhor ainda se sua mãe viesse a público anunciar um corretivo exemplar para a grosseria do filho. Melhor para a sociedade seria que os pais assumissem, com urgência, seu papel de educadores. Ou então gente como aquele garoto de Viamão se tornará mito, ícone para a juventude, exemplo a ser seguido; e nós, sim, é que mereceremos o título de “bobos da corte”.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O EVANGELHO É MAIS DO QUE UMA MENSAGEM


O Evangelho é mais do que uma mensagem; é um estilo de vida. Muito mais do que algo a ser crido e explicado, o Evangelho é algo a ser vivido, praticado. É na vivência dos que nele crêem que ele se traduz aos que não o entendem. A melhor explicação que poderia ser dada ao Evangelho é uma experiência prática de suas verdades.

Muitas vezes tornamos o Evangelho um mero teorema espiritualoide. Falamos dele mas esquecemos de vivê-lo. Pregamos, mas não o demonstramos. Teorizamos, teologamos, mas não o explicitamos.

Jesus não teve muito tempo para pregar o Evangelho, por isso ele o existencializou. A sua grande ordem aos discípulos foi: “Ide e fazei discípulos”. Discípulos não seguem teorias; discípulos copiam gestos, seguem passos, praticam exemplos. Evangelizar nada mais é do que ver o Evangelho em ação na vida de quem nele crê.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

FERIDOS EM NOME DE DEUS


A jornalista Marília de Camargo César escreveu um provocante texto sobre o abuso espiritual provocado por líderes religiosos que agem, supostamente, em nome de Deus. Comprei o livro e estou lendo. Vale à pena a leitura. É um livro simples, de leitura fácil e ao mesmo tempo desconfortável. Fácil porque a autora não se preocupa em psicologizar o assunto, nem criar teorias desnecessárias. Vai direto ao asssunto. E é desconfortável porque faz a gente questionar os próprios métodos como liderança pastoral. Excetuados alguns exageros desnecessários, Feridos em nome de Deus é uma boa referência para pensar no assunto. Abaixo transcrevo uma entrevista que a autora concedeu recentemente à revista Época.


ÉPOCA – Por que você resolveu abordar esse tema?
Marília de Camargo César – Eu parti de uma experiência pessoal, de uma igreja que frequentei durante dez anos. Eu não fui ferida por nenhum pastor, e esse livro não é nenhuma tentativa de um ato heroico, de denúncia. É um alerta, porque eu vi o estado em que ficaram meus amigos que conviviam com certa liderança. Isso me incomodou muito e eu queria entender o que tinha dado errado. Não quero que haja generalizações, porque há bons pastores e boas igrejas. Mas as pessoas que se envolvem em experiências de abusos religiosos ficam marcadas profundamente.

ÉPOCA – Qual foi a história que mais a impressionou?
Marília – Uma das histórias que mais me tocaram foi a de uma jovem que tem uma doença degenerativa grave. Em uma igreja, ela ouviu que estava curada e que, caso se sentisse doente, era porque não tinha fé suficiente em Deus. Essa moça largou os remédios que eram importantíssimos no tratamento para retardar os efeitos da miastenia grave (doença autoimune que acarreta fraqueza muscular). O médico dela ficou muito bravo, mas ela peitou o médico e chegou a perder os movimentos das pernas. Ela só melhorou depois de fazer terapia. Entendeu que não precisava se livrar da doença para ser uma boa pessoa.

ÉPOCA – Que tipo de experiência você considera como abuso religioso e que marcas são essas?

Marília – Meu livro é sobre abusos emocionais que acontecem na esteira do crescimento acelerado da população de evangélicos no Brasil. É a intromissão radical do pastor na vida das pessoas. Um exemplo: uma missionária que apanha do marido sistematicamente e vai parar no hospital. Quando ela procura um pastor para se aconselhar, ele fala assim para ela: “Minha filha, você deve estar fazendo alguma coisa errada, é por isso que o teu marido está se sentindo diminuído e por isso ele está te batendo. Você tem de se submeter a ele, porque biblicamente a mulher tem de se submeter ao cabeça da casa. Então, essa mulher, que está com a autoestima lá embaixo, que apanha do marido - inclusive pelo Código Civil Brasileiro ele teria de ser punido - pede um conselho pastoral e o pastor acaba pisando mais nela ainda. E ele usa a Bíblia para isso. Esse é um tipo de abuso que não está apenas na igreja pentecostal ou neopentecostal, como dizem. É um caso da Igreja Batista, em que, teoricamente, os protestantes históricos têm uma reputação melhor.

ÉPOCA – Seu livro questiona a autoridade pastoral. Por quê?

Marília – As igrejas que estão surgindo, as neopentecostais, e não as históricas, como a presbiteriana, a batista, a metodista, que pregam a teologia da prosperidade, estão retomando a figura do “ungido de Deus”. É a figura do profeta, do sacerdote, que existia no Antigo Testamento. No Novo Testamento, não existe mais isto. Jesus Cristo é o único mediador. Então o pastor dessas igrejas mais novas está se tornando o mediador. Para todos os detalhes da sua vida, você precisa dele. Se você recebeu uma oferta de emprego, o pastor pode dizer se deve ou não aceitá-la. Se estiver paquerando alguém, vai dizer se deve ou não namorar aquela pessoa. O pastor, em vez de ensinar a desenvolver a espiritualidade, determina se aquele homem ou aquela mulher é a pessoa da sua vida. E o pastor está gostando de mandar na vida dos outros, uma atitude que abre um terreno amplo para o abuso.

ÉPOCA – Você também fala que não é só culpa do pastor.

Marília – Assim como existe a onipotência pastoral, existe a infantilidade emocional do rebanho, que é o que o Sérgio Franco, um dos pastores psicanalistas entrevistados no livro, fala. A grande crítica do Freud em relação à religião era essa. Ele dizia que a religião infantiliza as pessoas, porque você está sempre transferindo as suas decisões de adulto - que são difíceis - e a figura do sagrado, no caso aqui o líder religioso, para a figura do pai ou da mãe - o pastor, a pastora. É a tendência do ser humano em transferir responsabilidade. O pastor virou um oráculo. É mais fácil ter alguém, um bode expiatório, para pôr a culpa nas decisões erradas tomadas.

“O pastor está gostando de mandar na vida dos outros e receber presentes. Isso abre espaço para os abusos”

ÉPOCA – Quais são os grandes males espirituais que você testemunhou?

Marília – Eu vi casamentos se desfazer, porque se mantinham em bases ilusórias. Vi também pessoas dizendo que fazer terapia é coisa do Diabo. Há pastores contra a terapia que afirmam que ela fortalece a alma e a alma tem de ser fraca; o espírito é que tem que ser forte. E dizem isso supostamente apoiados em textos bíblicos. Dizem que as emoções têm de ser abafadas e apenas o espírito ser fortalecido. E o que acontece com uma teologia dessas? Psicoses potenciais na vida das pessoas que ficam abafando as emoções. As pessoas que aprenderam essa teologia e não tiveram senso crítico para combatê-la ficaram muito mal. Conheci um rapaz com muitos problemas de depressão e de autoestima que encontrou na igreja um ambiente acolhedor. Ele dizia ter ressuscitado emocionalmente. Só que com o passar dos anos, o pastor se apoderou dele. Mas ele começou a perceber que esse pastor é gente, que gosta de ganhar presentes e que usa a Bíblia para se justificar. Uma das histórias que mais me tocou foi a de uma jovem que tem uma doença degenerativa grave. Ela foi para uma dessas igrejas e ouviu que se estivesse sentindo ainda doente era porque não tinha fé suficiente em Deus. Essa moça largou os remédios que eram importantíssimos no tratamento para retardar os efeitos da miastenia grave (doença auto-imune que acarreta fraqueza muscular). O médico dela ficou muito bravo e não a autorizou. Mesmo assim, ela peitou o médico e chegou a perder os movimentos das pernas. Ela só melhorou depois de fazer terapia. Ela entendeu que não precisava se livrar da doença para ser uma boa pessoa.

ÉPOCA – Por que demora tanto tempo para a pessoa perceber que está sendo vítima?

Marília – Os abusos não acontecem da noite para o dia. A pessoa que está sendo discipulada, que aprende com o pastor o que a Bíblia diz, desenvolve esse relacionamento aos poucos. No primeiro momento, ela idealiza a figura do líder, como alguém maduro, bem preparado. É aquilo que fazemos quando estamos apaixonados: não vemos os defeitos. O fiel vê esse líder como um intermediário, como um representante de Deus que tem recados para a vida dele, um guru. E o pastor vai ganhando a confiança dele num crescendo, como numa amizade. Esse líder, que acredita que Deus o usa para mandar recados para sua congregação, passa a ser uma referência na vida do fiel. O fiel, pro sua vez, sente uma grande gratidão por aquele que o ajudou a mudar sua vida para melhor. Ele se sente devedor do pastor e começa, então, a dar presentes. O fiel quer abençoar o líder porque largou as drogas, ou parou de beber, ou parou de bater na mulher, ou porque arrumou um emprego e está andando na linha. E começa a dar presentes de acordo com suas posses. Se for um grande empresário, ele dá um carro importado para o pastor. Isso eu vi acontecer várias vezes. O pastor, por sua vez, gosta de receber esses presentes. É quando a relação se contamina, se torna promíscua. E o pastor usa a Bíblia para dizer que esse ato é bíblico. O poder está no uso da Bíblia para legitimar essas práticas.

ÉPOCA – Qual é o limite da autoridade pastoral?

Marília – O pastor tem o direito de mostrar na Bíblia o que ela diz sobre certo tema. Como um bom amigo, ele tem o direito de dar um conselho. Mas ele tem de deixar claro que aquilo é apenas um conselho. Pode até falar que o resultado disso ou daquilo pode ser ruim para a vida do fiel. Mas ele não pode mandar a pessoa fazer algo em nome de Deus. O que mais fere as pessoas é ouvir uma ordem em nome de Deus. Se é Deus, então prova! Se Deus fala para o pastor, por que Ele não fala para o fiel? Eles estão sendo extremamente autoritários.

ÉPOCA – Você afirma que muitos dos pastores não agem por má-fé, mas por uma visão messiânica. Explique.

Marília – É uma visão messiânica para com seu rebanho. Lutero (teólogo alemão responsável pela reforma protestante no século XVI) deve estar dando voltas na tumba. Porque o pastor evangélico virou um papa que é a figura mais criticada no catolicismo, o inerrante. E não existe essa figura, porque somos todos errantes, seres faltantes, como já dizia Freud. Pastor é gente. E é esse pastor messiânico que está crescendo no evangelismo. Existe uma ruptura entre o Antigo e o Novo Testamento, que é a cruz. A reforma de Lutero veio para acabar com a figura intermediária e a partir dela veio a doutrina do sacerdócio universal. Todos têm acesso a Deus. Uma das fontes do livro disse que precisamos de uma nova reforma e eu concordo com ela. Essa hierarquização da experiência religiosa, que o protestante tanto combateu no catolicismo, está se propagando. Você não pode mais ter a conversa direta com o divino. Porque tem aquela coisa da “oração forte” do pastor. Você acha que ele ora mais que você, que ele tem alguma vantagem espiritual e, se você gruda nele, pega uma lasquinha. Isso não existe. Somos todos iguais perante Deus.

ÉPOCA – Se a igreja for questionada em seus dogmas, ela não deixará de ser igreja?

Marília – Eu não acho isso. A igreja tem mesmo de ser questionada, inclusive há pensadores cristãos contemporâneos que questionam o modelo de igreja que estamos vivendo e as teologias distorcidas, como a teologia da prosperidade, que são predominantemente neopentecostais e ensinam essa grande barganha. Se você não der o dízimo, Deus vai mandar o gafanhoto. Simbolicamente falando, Ele vai te amaldiçoar. Hoje o fiel se relaciona com o Divino para as coisas darem certo. Ele não se relaciona pelo amor. Essa é uma das grandes distorções.

ÉPOCA – Por que você diz que existe uma questão cultural no abuso religioso?

Marília – Porque o brasileiro procura seus xamãs, e isso acontece em todas as religiões. O brasileiro é extremamente religioso. A ÉPOCA até publicou uma matéria sobre isso, dizendo que a maioria acredita em algo e se relaciona com isso, tentando desenvolver seu lado espiritual. O brasileiro gosta de ter seu oráculo. A pessoa que vem do catolicismo, onde há centenas de santos, e passa a ser evangélica transfere aquela prática e cultura do intermediário para o protestantismo, e muitas igrejas dão espaço para isso. O pastor Edir Macedo (da igreja Universal) trouxe vários elementos da umbanda, do candomblé, porque ele é convertido. Ele diz que o povo precisa desses elementos -que ele chama de pontos de contato - para ajudar a materializar a experiência religiosa. A Bíblia condena tudo isso.

ÉPOCA – No livro você dá alguns alertas para não cair no abuso religioso. Fale deles.

Marília – Desconfie de quem leva a glória para si. Um conselho é prestar atenção nas visões megalomaníacas. Uma das características de quem abusa é querer que a igreja se encaixe em suas visões, como quere ganhar o Brasil para Cristo e colocar metas para isso. E aquele que não se encaixar é um rebelde, um feiticeiro. Tome cuidado com esse homem. Outra estratégia é perguntar a si mesmo se tem medo do pastor ou se pode discordar dele. A pessoa que tem potencial para abusar não aceita que discorde dela, porque é autoritária. Outra situação é observar se o pastor gosta de dinheiro e ver os sinais de enriquecimento ilícito. São esses geralmente os que adoram ser abençoados e ganhar presentes. Cuidado com esse cara.