sexta-feira, 1 de outubro de 2010

UM TÚNEL NO FIM DA LUZ

Certa vez, bem no início do meu ministério, resolvi fazer algumas visitas no hospital da cidade onde morava. Ali encontrei-me com um simpático – e barbudo - senhor, internado havia alguns dias, com quem iniciei uma agradável conversa, apesar das circunstâncias. Falávamos sobre temas variados, que iam da sua história pessoal à política e religião.

A conversa fluía bem, até que fomos surpreendidos por um “crente”, devidamente trajado, com camisa de manga comprida e gravata, portando sua imponente Bíblia de letras gigantes. Sem rodeios, e sem pedir licença, o “crente” atravessou a nossa conversa, apresentando imediatamente a sua ensaiada e veemente pregação evangelística. Foram alguns longos minutos de intensa e entusiasmada prédica, até que o senhor, doente – e barbudo - ouviu a famosa e inevitável pergunta: “O senhor quer aceitar Jesus?”.

Constrangido, o barbudo respondeu que “sim”, aceitava Jesus, ao que se seguiu uma oração forte, declarando aquele senhor barbudo como salvo e credenciado ao céu. Aquele barbudo senhor parecia ter encontrado finalmente a luz. Mas, mal sabia ele que, após a luz viria um túnel; um longo e dificultoso túnel, cheio de exigências e normas, que começariam, inflexivelmente, pela raspadura da sua barba.

“Agora que aceitou Jesus, o senhor é um crente; quando sair daqui o senhor vai rapar a barba, cortar o cabelo e procurar a igreja”, sentenciou o “crente”. E pronto. Despediu-se, certo do dever cumprido, procurando novos pecadores para anunciar seu evangelho anti-barba.

Diante de uma situação como esta, as indagações são inevitáveis: O que faz as pessoas pensarem que a simples resposta a uma pergunta do tipo: “O senhor quer aceitar Jesus?”, faz de alguém um crente? Qual a incompatibilidade entre a barba e o céu? Por que certos “crentes” insistem em apontar um túnel após a luz em suas pregações “evangelísticas”, como se a manutenção da salvação dependesse do cumprimento estrito de fórmulas religiosas ou denominacionais?

A pregação evangelística corre o grande risco de se tornar uma pregação de imposição de regras e normas simplistas se não for cuidadosamente baseada no modelo dos Evangelhos. Jesus nunca pregou usos e costumes culturais como sendo normas absolutas para se seguir o caminho da salvação. Os apóstolos jamais transformaram o caminho da graça em uma estrada pedregosa de normas retiradas de um código de conduta particular. A pregação apostólica sempre viu a graça como a luz no fim do túnel das exigências judaicas e do desespero do paganismo.

Antes que alguém se manifeste, quero deixar claro que eu creio em um evangelho exigente. Não advogo um evangelho sem regras, que não aponte para a necessidade de santidade pessoal. Mas eu também creio que, quem nos conduzirá no caminho da luz, na prática de valores santos é o Espírito de Deus que em nós passa a habitar após a conversão. Além disso, não creio que usos e costumes culturais se enquadrem na condição de “valores santos”. Jesus dizia: “Vai e não peques mais”; mas não se ouviu de Jesus: “Vai, corta o cabelo, faça a barba, não ouça música secular”, etc.

Para muitas pessoas, encontrar a luz pode ser uma experiência assustadora, pois o túnel das exigências culturais se apresenta longo e impossível de ser atravessado. Muitos se perdem nos labirintos dos pequenos preceitos transformados em condições inalienáveis de fé; outros desistem no meio do caminho por se julgarem incompetentes diante de tantas determinações; e há aqueles que continuam seguindo pelo túnel, batendo a cabeça, tropeçando no enredo das cartilhas do “não pode, não faça, não veja, não leia”, esforçando-se para sair da escuridão e do abandono de um evangelho sem Graça.

Quando alguém verdadeiramente encontra a luz de Cristo, passa a caminhar de olhos abertos rumo ao triunfo do céu. É bem verdade que sua caminhada se dá em uma alameda estreita; mas é um caminho iluminado pela Palavra de Deus, cheio de alegria e liberdade no Espírito. Não liberdade para o pecado, é claro, mas liberdade de ser. O Evangelho muda o ser humano por dentro, é verdade; todavia, permite que certas características que estão do lado de fora permaneçam as mesmas.

O apóstolo Paulo orientou as igrejas cristãs a respeito do túnel no fim da luz. Aos Gálatas ele disse: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão” (Gl 5. 1). Aos Colossenses exortou: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida ou bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isto tem sido sombra das cousas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo” (Cl 2. 16 e 17). “Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem” (Cl 2. 20 a 22).

Não sou adepto do evangelho do “tudo pode”. Entretanto, não me agrada o evangelho do túnel no fim da luz. Precisamos buscar na Palavra de Deus o equilíbrio que nos faça viver dignamente o evangelho de Cristo. Neste evangelho, sim, há liberdade de ser, há alegria de viver, há satisfação e paz interior. No evangelho de Cristo o homem encontra-se com a graça que lhe devolve a vida e a liberdade roubadas pela queda.

Minha conversa com o barbudo encerrou-se com uma frase que eu nunca mais esqueci. Após a saída do “crente” evangelista, o barbudo me disse: “É por isso que a gente, às vezes, não dá crédito a esse tipo de pregação”. É verdade, barbudo. É verdade.


Agnaldo Silva Mariano

3 comentários:

Gidiel Camara disse...

Boa mensagem; e olha que eu nem tenho barba (rs), mas tô cansado destes túneis fabricados pelos homens "mestres da lei".

Pr. Wagner Cipriano, Cultura Evangélica Publicações disse...

Gostei. É a maturidade do Evangelho falando mais alto. Deus te abenço poderosamente, Pastor. Afinal, O que fazer quando a Igreja perde a noção do que é a verdade do Evangelho, confundido doutrinas com costumes?
Qual é o ponto de equilíbrio entre a disciplina e a liberdade cristã?
Como estabelecer limites para a liberdade na vida cristã? Também tenho procurado falar sobre isso em: http://culturaevangelica.blogspot.com/2010/10/igrejas-fermentadas.html
Deus te abençoe, Pr. Agnaldo.
Do irmão em Cristo,

Pr. Wagner Cipriano
http://culturaevangelica.blogspot.com/2010/10/igrejas-fermentadas.html

Anônimo disse...

Caro Rev. Agnaldo,
O episódio que contou pode até parecer estranho, mas infelizmente é muito comum em nossos dias.
Cresce a cada dia mais esse pseudo-evangelho em meio aos desavisados.
Tenhamos sempre firmeza em combatê-lo, livrando aqueles que estão aprisionados por esses falsos mestres. E ainda, advertindo os que se utilizam disso, para que a luz de Cristo ilumine suas mentes para enxergar o bom e correto Caminho.
forte abraço,
Em Cristo,
Pr. Magdiel G Anselmo.