quinta-feira, 28 de julho de 2011

CHAMADOS A OUVIR DUAS VEZES

Por John Stott

A principal razão para toda traição ao verdadeiro Jesus é que nós ouvimos com exagerada deferência a moda contemporânea, ao invés de escutarmos a Palavra de Deus. A busca por relevância torna-se tão impetuosa que nós sentimos que temos que capitular diante dela, independente do custo. Estamos acostumados a esse tipo de pressão no mundo dos negócios, onde quem determina o produto da firma são os especialistas em marketing, ao descobrirem o que irá vender, o que o público irá comprar. Às vezes parece que o mercado impõe sua regras também à igreja. Com toda prestatividade, nós cedemos ao espírito moderno, tornando-nos escravos da última moda, e até mesmo idó­latras, dispostos a sacrificar a verdade no altar da mo­dernidade. Então a busca por relevância acaba se degene­rando, transformando-se em uma obsessão por populari­dade.

O outro extremo da irrelevância é a acomodação, que é uma covarde e inescrupulosa rendição ao Zeitgeist, o espírito da época. Thielicke foi assaltado por esse perigo, pois ele não conseguia esquecer como é que os assim cha­mados "cristãos germânicos", durante o Terceiro Reich de Hitler, aceitavam e até defendiam os mitos raciais dos nazistas. Ele insistia, portanto, em que a verdadeira teo­logia "sempre implica num debate entre o kerygma e a autocompreensão de uma era... entre a eternidade e o tempo". Ademais, nesse debate "a fé acredita tanto contra como em"; ela nasce em uma reação consciente a idéias correntes. Assim, Thielicke escreve sobre a "estrutura polar" da teologia, na qual um polo é "uma base eterna e superior que se deriva da revelação" e o outro é cons­tituído de "constelações específicas do espírito da época". "A fé", insiste ele, "sempre será um risco ... ela há de implicar, não um porquê, mas um apesar de em face da realidade do humano."

Da mesma forma, Peter Berger, como sociólogo cristão, tem algumas coisas pertinentes a dizer acerca da neces­sidade de se caminhar cautelosamente entre a irrelevância e a acomodação:Eu gostaria de esclarecer uma vez mais que não estou dizendo que os cristãos não deveriam ouvir as idéias dos outros, ou levar a sério o que acontece no seu contexto cultural, ou participar de lutas políticas do seu tempo. O que me perturba não é o fato de se ouvir como tal, mas, sim, o fato de ouvir com adulação acrítica, se não intenção idólatra — de ouvir, se é que se ouve, de olhos arregalados e boquiabertos de admiração”.

E Peter Berger continua dizendo: "Eu acho que simples­mente chegou a hora de dar um 'Basta!' a essa dança em torno dos bezerros de ouro da modernidade". Mais im­portante do que indagar o que o homem moderno tem a dizer à igreja é perguntar o que a igreja tem a dizer ao homem moderno.

O povo de Deus vive num mundo que é frequentemente inamistoso e, certas vezes, declaradamente hostil. Nós vivemos constantemente expostos à pressão para "entrar­mos na forma". No entanto, através de toda a Escritura, somos exortados a uma firme não-conformação, e as ad­vertências para quem cede ao mundanismo são muito sérias. No Antigo Testamento o Senhor disse ao seu povo depois do êxodo: "Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus es­tatutos guardareis..." Mesmo assim o povo disse a Samuel: "... constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações". E, mais tarde, Ezequiel teve que repreendê-los por sua idolatria: "...dizeis: Seremos como as nações, como as outras gerações da terra, servindo ao pau e à pedra". Foi a mesma coisa nos dias do Novo Testamento. A despeito dos mandamentos bem claros de Jesus — "Não vos assemelheis a eles" - e de Paulo - "Não vos conformeis com este mundo" -, a constante tendência do povo de Deus era, e ainda é, com­portar-se "como os gentios" - até que nada mais parece distinguir a igreja do mundo, os cristãos dos não-cristãos, em convicções, valores e padrões.

Graças a Deus, porém, sempre houve algumas almas nobres que permaneceram firmes, às vezes sozinhas, re­cusando-se a se comprometer. Penso em Jeremias no século VI a.C, em Paulo, no seu tempo ("todos:.. me abandona­ram"), Atanásio no século IV e Lutero no século XVI. C. S. Lewis escreveu seu tributo a Atanásio, que sustentou a divindade de Jesus e a doutrina da Trindade, quando a igreja inteira estava decidida a seguir o herege Ário: "Sua glória é que ele não seguiu o curso da época; sua recompensa é que agora ele permanece, enquanto aquela época, como todas as épocas, já se foi".

Hoje, pois, nós estamos decididos a lutar para apresentar o evangelho de tal forma que ele fale aos dilemas, temores e frustrações do mundo moderno; estamos, no entanto, igualmente decididos a não comprometer o evangelho a fim de fazer isso. Certas pedras de tropeço são intrínsecas ao evangelho original e não podem ser eliminadas, e nem mesmo abrandadas, a fim de torná-lo mais agradável ao paladar contemporâneo. O evangelho contém certos aspec­tos tão estranhos ao pensamento moderno que ele sempre há de parecer "loucura" para os intelectuais, por mais que nos esforcemos (e com razão) para mostrar que ele é "de verdade e de bom senso". A cruz sempre há de constituir-se em uma agressão à justiça própria do homem, bem como um desafio à sua auto-indulgência. Seu "escândalo" (pedra de tropeço) simplesmente não pode ser removido. De fato, a igreja fala ao mundo com mais autenticidade, não quando ela faz adaptações vergonhosas motivadas por covardia, mas, sim, quando se nega a fazê-las; não quando ela se torna totalmente indistinta do mundo, mas quando sua luz distintiva brilha ainda mais.

John Stott em: "Ouça o Espírito, ouça o mundo", editora ABU.

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